A Lei Social Principal e o Desenvolvimento Social Sustentável

por Jos Schoenmaker

Hoje em dia muito se fala em desenvolvimento sustentável, que surge como questão e preocupação exatamente porque praticamente todo progresso cientifico e tecnológico da atualidade vem representando mais uma ameaça do que uma contribuição à sustentabilidade da relação do ser humano com seu ambiente em sua dimensão natural, social e espiritual. O progresso vem se mostrando insustentável em sua dimensão natural, porque o ritmo de uso e destruição dos recursos naturais há muito vem extrapolando a capacidade de sua renovação pela própria Natureza. Mostra-se insustentável em sua dimensão social, porque não obstante todo progresso científico e tecnológico, mais da metade da humanidade vive ainda em condições subumanas, miseráveis e o fosso entre ricos e pobres continua crescendo.

A violência se tornou endêmica em nossa sociedade, multiplicam-se os conflitos e as guerras, e a concentração de poder econômico e político nas mãos de poucos. Em sua dimensão espiritual, porque o pensar materialista da nossa época só é capaz de apreender o âmbito material, do não vivo, e vem se mostrando totalmente inadequado para compreender a vida, a realidade supra-sensível que está na base e na origem de tudo que é realidade fisicamente perceptível. A Antroposofia, como ciência espiritual, traz uma enorme contribuição para a superação das limitações deste modo de pensar, que está na base de praticamente todo progresso científico e tecnológico da atualidade, progresso este que vem gerando frutos num processo que a cada dia vem se mostrando mais insustentável. Em 3 artigos publicados em 1905/1906 (reeditados pela Editora Antroposófica sob o nome “Economia e Sociedade à luz da Ciência Espiritual”) Rudolf Steiner trata desta relação da Ciência Espiritual com a questão social. Nestes artigos ele afirma que “Quem quer atuar na vida deve primeiro compreendê-la, deve conhecer as suas leis”, constatando que “o grande engano da atualidade, neste sentido, é justamente qualquer um considerar-se apto a compreender a vida, ainda que não tenha estudado as suas leis básicas, nem treinado o pensar, para então perceber as suas verdadeiras forças”.

Nestes artigos está o germe e a essência do que foi desenvolvido por ele posteriormente como compreensão da Trimembração do Organismo Social. No último destes artigos ele traz o enunciado da Lei Social Principal, a qual assim denominou porque “esta lei tem uma validade para a vida social tão exclusiva e necessária como é válida uma lei natural para uma determinada área de fenômenos naturais”. Diz essa Lei: “O bem de uma integralidade de pessoas que trabalham em conjunto será tanto maior quanto menos o indivíduo exigir para si os resultados de seu trabalho, ou seja, quanto mais ceder destes resultados a seus colaboradores, e quanto mais suas necessidades forem satisfeitas não por seu próprio trabalho, mas pelo dos demais”. Em reação à crítica daqueles que consideram essa lei expressão de um “idealismo horripilante”, Steiner deixa claro que ela é mais prática do qualquer outra idealizada ou introduzida por um “prático”: qualquer instituição (seja ela empresa, escola, “ONG” ou instituição governamental) só pode existir socialmente na medida em que, em parte, corresponde a esta lei, ao mesmo tempo em que em parte também necessariamente a contradiz. “Assim deve ser por toda parte, quer se queira quer não, pois qualquer integralidade de pessoas seria desfeita se o trabalho do indivíduo não fluísse para o todo”. Realmente, a existência de qualquer organização se deve única e exclusivamente ao fato de atender com seu trabalho as necessidades de outros. Vivemos numa sociedade que se caracteriza pela divisão de trabalho, que faz com que o nosso trabalho esteja necessariamente atendendo a necessidades de outro, ao mesmo tempo em que nossas necessidades são satisfeitas não por nosso próprio trabalho mas pelo resultado do trabalho de outros. Todo progresso social se deve a este fato. Basta imaginar o estágio primitivo em que ainda nos encontraríamos se as necessidades de cada um tivessem que ser satisfeitas por seu próprio trabalho – cada um cultivando seu próprio alimento, tecendo sua própria roupa, etc. – estaríamos ainda na “idade da pedra”. Assim, da divisão de trabalho, do fato de uns estarem de fato trabalhando para outros, resulta todo progresso social. Mas, prossegue Rudolf Steiner no mencionado livrinho “o egoísmo humano sempre contrariou esta lei. Ele procurou extrair do trabalho o máximo de proveito para o próprio indivíduo. E toda penúria, pobreza e miséria sempre foram conseqüência deste egoísmo… Isto quer dizer que instituições humanas criadas por “práticos” que levaram em conta o egoísmo sempre resultam ineficientes”.

Tais resultados mostram-se, como diríamos hoje, “socialmente insustentáveis”. Um destes “práticos” que levaram em conta o egoísmo e que vem se mostrando socialmente ineficiente é Adam Smith, cujo pensamento está na origem do Liberalismo, cuja máxima reza o seguinte: “Quanto mais cada um se empenhar da forma mais conseqüente possível pelo interesse próprio, disso resultará automaticamente o bem estar geral”. Adam Smith chegou a esta conclusão no século XVIII, a partir de sua Investigação sobre o Progresso das Nações. De fato, o capitalismo até hoje fundamenta sua atuação nesta máxima. Se de um lado é inegável a contribuição que o capitalismo trouxe para o progresso no campo econômico, tecnológico, etc., por outro lado, é mais do que evidente que disto nunca resultou “automaticamente o bem estar geral”. Pelo contrário, as desigualdades sociais só vêm crescendo no mundo. A título de ilustração – a diferença entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres era de 11 vezes em 1913, 30 vezes em 1960 e 72 vezes em 1998! Como resultado, no mundo atual uma minoria cada vez menor tem a possibilidade de satisfazer necessidades cada vez mais sofisticadas enquanto crescente maioria não consegue satisfazer sequer as necessidades mais básicas! O Liberalismo contribui para o progresso na medida em que cria um ambiente que estimula a mobilização das capacidades humanas, a utilização dos talentos através do trabalho. Como vivemos numa sociedade regida pela divisão de trabalho, o trabalho de cada um se volta necessariamente para a satisfação de necessidades (reais ou forjadas) de outros. A divisão de trabalho faz com que eu só consiga gerar com meu trabalho um benefício para mim mesmo, sem antes eu gerar com meu trabalho um benefício (real ou forjado) para outros. Na mesma medida em que este trabalho contribui para a satisfação de reais necessidades de outros, contribui também para o progresso econômico-social. Sendo assim, o trabalho tem, em si, um caráter social – ele se destina a atender a necessidades de outros. Mas enquanto a motivação para o trabalho continuar sendo egoísta – visando extrair dele o máximo de benefício para si próprio, nesta mesma medida, estará contribuindo para gerar sofrimento e miséria social em algum elo da cadeia social.

Por isso mesmo, no referido ensaio Rudolf Steiner afirma que “fica claro que ela (a Lei Social Principal) não diz nada menos do que: o bem estar humano é tanto maior quanto menor for o egoísmo”. O desafio central que se coloca então é a superação da motivação egoísta do trabalho. Para tal é necessário que a necessidade do outro possa se transformar no motivo, na razão de ser do trabalho de cada um. Na atualidade o trabalho se dá cada vez mais no contexto de organizações, instituições, empresas, as quais se inserem em comunidades, às quais Steiner denomina de integralidades. “Da mesma forma, prossegue Steiner, é necessário que quem deva trabalhar para uma integralidade também reconheça o valor, a natureza e o significado desta integralidade. Porém isso ele só conseguirá se essa integralidade for algo completamente diferente de uma mera soma indefinida de indivíduos. Ela deve estar imbuída de um espírito real do qual todos participem; deve ser de tal natureza que cada um possa dizer: ela é certa e quero que seja assim. Essa integralidade deve ter uma missão espiritual e cada qual deve querer contribuir para que essa missão se realize”. Encontrar no outro a razão de ser para o seu trabalho, e/ou a identificação com a missão da organização para a qual se trabalha, levando cada um a querer livremente contribuir para a sua realização se apresenta assim como a primeira condição para a superação do egoísmo, do interesse próprio, como motivação para o trabalho. Por isso mesmo Steiner conclui: “a tarefa hoje consiste em conduzir os homens a uma situação em que cada um realize o trabalho para a integralidade a partir de seu próprio impulso interior”. Mas Steiner deixa claro que não é qualquer missão que pode despertar o impulso para a superação de forças egoístas. Ele indica claramente que essa missão tem que ter caráter espiritual, fundamentada numa “cosmo visão espiritual que por si mesma, pelo que tem a oferecer, se introduza nos pensamentos, nos sentimentos e na vontade, ou seja, na alma humana como um todo”. Se a superação do egoísmo tem como primeira condição que o indivíduo possa encontrar no outro o motivo, a razão de ser para o seu trabalho, a condição complementar é que “cada indivíduo deve ser mantido pelo trabalho dos demais”. Isso fala por si: se a medida do bem estiver do indivíduo, em termos de atendimento de suas necessidades materiais, está diretamente vinculado ao próprio trabalho, como o é hoje, através dos salários, remuneração de serviços, etc., forçosamente este indivíduo continuará trabalhando para si mesmo. Por isso mesmo Steiner enfatiza que: “O importante aqui é que trabalhar para o próximo e ter determinada receita sejam coisas totalmente separadas uma da outra”. Assim, Steiner indica duas condições complementares e interdependentes para a superação da motivação egoísta do trabalho, do que em última análise depende o progresso social: que cada indivíduo possa encontrar no outro ou na missão espiritual da organização, que integra o motivo para o seu trabalho, e que cada indivíduo seja suprido em suas necessidades pelo trabalho dos demais, de maneira a que a receita que ele recebe para atender as suas necessidades seja desvinculada do trabalho que realiza para o próximo. Se à luz destas duas condições olharmos para a realidade atual do trabalho no âmbito das organizações – sejam elas da esfera econômica, social ou cultural – veremos que há significativos avanços no que diz respeito à primeira condição: cada vez mais pessoas buscam e encontram no outro ou na missão espiritual de sua organização a razão de ser maior de seu trabalho e se mostram capazes de grandes sacrifícios pela realização dos ideais que norteiam seu trabalho. No entanto, são praticamente nulos os avanços no que se refere à segunda condição: o bem estar de cada indivíduo, no que diz respeito ao atendimento de suas necessidades materiais, continua sendo determinado basicamente pela receita que cada um recebe em função de seu próprio trabalho. E nesta mesma medida, as pessoas continuam forçosamente trabalhando para si mesmas, mantendo-se assim atreladas ao egoísmo: “Quem trabalha para si sucumbe, aos poucos, necessariamente ao egoísmo”. Fica a questão: de que formas podem trabalho e receita serem separadas uma da outra? Que práticas existem hoje que trazem um avanço nesta direção? Num próximo número esperamos poder trazer uma contribuição frente a estas questões. Esperamos que o que até aqui foi escrito contribua para instigar a reflexão e estimule os leitores a beber direto da fonte, através do estudo do mencionado livrinho de Rudolf Steiner.

Jos Schoenmaker, consultor do Núcleo MaturiEcologia Social, membro da Associação de Pedagogia Social e da Association for Social Development

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