“Todas as pessoas estão capturadas em uma rede inescapável de mutualidade, ligadas por um único tecido do destino. O que quer que afete a um diretamente, afeta a todos indiretamente. Eu nunca poderei ser o que eu devo ser até que você seja o que deve ser. E você nunca poderá ser o que deve ser até que eu seja o que devo ser”. Essa frase de Martin Luther King é muito significativa para o que hoje chamamos de Globalização: todos os seres humanos estão interligados numa teia global de interdependência, determinante para o bem estar e o sofrimento social de cada ser humano sobre a face da terra. Estou ligado ao povo de Taiwan pelo computador que estou usando, com o povo da China pelas roupas que visto, com os povos do Japão, da América do Norte e da Europa através da aparelhagem de som, do carro, etc. de que me utilizo.
Essa Globalização é uma realidade definitiva desde o século passado e significa um limiar que coloca novas exigências à nossa consciência. Como foi apontado por Rudolf Steiner e descrito por Jörgen Smit em seu livro a respeito de transformação pessoal e social: “Se um limiar é ultrapassado somente a um nível inconsciente ou semi-consciente, ficamos para trás e uma catástrofe é inevitável”. Aspectos que antes estavam integrados dentro de um determinado contexto natural começam a se separar e precisam ser integrados por um nível de consciência mais elevado. Isso se dá, interiormente, com o nosso pensar, sentir e querer quando ultrapassamos o limiar do mundo espiritual e isso requer o desenvolvimento de um nível de consciência mais elevado para mantê-los integrados, ou então acarretará terríveis conseqüências para a nossa saúde, moralidade, etc.. Exteriormente a Humanidade transpôs no século passado – de forma in- ou semiconsciente, o limiar da Globalização – o de se tornar um único organismo social global. As catástrofes que resultaram disto estão visíveis desde os seus primórdios, durante a assim chamada colonização do Mundo Novo, no século XVI e suas terríveis conseqüências para, p.ex., o continente africano, mortalmente ferido por este período. No último século tivemos as catástrofes de duas guerras mundiais, a polarização políticoideológica entre Ocidente e Oriente (em cujo contexto podemos situar também o atentado terrorista de 11 de Setembro último) e a polarização econômica entre Norte e Sul. Socialismo e Comunismo surgiram como uma reação ao Liberalismo e Capitalismo mas não puderam realmente oferecer uma alternativa.
A consciência que agora é requerida foi claramente expressa por Rudolf Steiner: “No desenvolvimento da Humanidade, cada um não tem o direito de se sentir como individualidade se não se sentir ao mesmo tempo parte de toda a Humanidade”. A realidade é que cada um de nós – como pessoas, como organizações – se percebe muito fortemente como individualidade, como entidade, mas apenas muito vagamente nos sentimos fazendo parte de um todo, como células de um organismo social formado por toda a Humanidade. Em termos globais estamos longe da consciência maravilhosamente expressa na tradição sul-africana do Ubuntu (e que encontra seu paralelo também nas tradições indígenas brasileiras): “Eu sou porque você é; você é porque eu sou; nós somos por sermos uma comunidade”. Na década de 80 fui profundamente tocado por uma palestra de Lex Bos num dos Seminários de Pedagogia Social, quando ele nos falou sobre o destino final da Humanidade, de se constituir no Corpo de Cristo. Corpo de Cristo, que tem na Terra e Natureza Seu corpo físico, como expresso por Ele quando partilhou com os discípulos o pão e o vinho da Última Ceia, como sendo Seu corpo e Seu sangue. Corpo de Cristo, que deve ter a Vida Econômica como Seu corpo etérico, no qual os fluxos econômicos podem nutrir de forças vitais todo o organismo social. Corpo de Cristo que deve ter na Vida Jurídica Seu corpo astral, ordenando as relações entre todos os integrantes deste organismo. Corpo de Cristo, no qual a Vida Cultural-Espiritual possa se constituir em cálice para o Seu Eu, o Espírito Sanante que pode integrar, tornar e manter inteiro o organismo social da Humanidade, cuja primeira manifestação se deu em Pentecostes, gerando-a partir do Espírito- uma comunidade constituída de individualidades plenas e livres.
Se olharmos hoje para a Humanidade como o Corpo de Cristo, da perspectiva da maioria da população mundial, a imagem que surge perante nós é ainda o de Cristo Crucificado. Seu corpo gravemente ferido, como se encontra ferida hoje a Terra e a Natureza, pela poluição da água e do ar, pela destruição de florestas e pelo sacrifício de milhões de animais, como se deu na Europa no ano passado pela doença da Vaca Louca (se em tempos antigos animais eram queimados em sacrifícios à divindade – deveríamos nos perguntar a que “divindade” foram sacrificadas as vidas destes animais?!). Como o Cristo Crucificado, a humanidade hoje tem suas mãos e pés pregados na cruz, imobilizados pela miséria que condena mais da metade da população mundial a sobreviver com menos de 1 dólar por dia! Seu coração é trespassado pela fria lança da falta de compaixão e senso de justiça. Porque, do ponto de vista espiritual, como disse Steiner, nós não deveríamos conseguir dormir enquanto houver pessoas sofrendo – mas continuamos dormindo muito bem apesar de todo o sofrimento humano que nos cerca! Sua cabeça continua coroada hoje com os espinhos do pensar materialista que caracteriza a nossa Vida Cultural, de forma determinante para toda a sociedade, por mais que se fale hoje em espiritualidade. Porque, como indicou Rudolf Steiner em suas palestras sobre O Aspecto Interior da Questão Social: “a causa do caráter não espiritual da nossa época não se deve ao fato de as pessoas não crerem no espírito mas ao fato de não alcançarem tal relação com o espírito de forma a possibilitar ao espírito governar o material na vida real”. Em outras palavras, a vida espiritual da nossa época não consegue trazer reais impulsos para o desenvolvimento social no âmbito material da nossa sociedade.
No entanto, da mesma forma em que a luz do Espírito de Cristo começou a luzir nas trevas através de Seu corpo na cruz, também podemos hoje encontrar muitos sinais desta luz da ressurreição em nossa sociedade: no trabalho de milhões de pessoas que estão “fazendo o bem”, como Lievegoed descreveu em seu livro Rumo ao Século XXI, buscando melhores condições de vida para os mais pobres e excluídos; na solidariedade de milhões de pessoas para com outras, próximas ou distantes; no trabalho daqueles que buscam promover o desenvolvimento social, superar conflitos; no trabalho de todas as pessoas em todos os campos, colocando suas capacidades genuinamente a serviço das necessidades de outros. Podemos reconhecer essa luz da ressurreição na consciência e responsabilidade ecológicas que crescem ao redor de todo o mundo. E mesmo na responsabilidade social genuína que vem despertando no âmbito de empresas em todo o mundo, ainda que em grande parte como fachada para ocultar seus interesses egoístas predominantes. Certamente, uma das luzes mais brilhantes do Espírito para a nossa época nos foi trazida por Rudolf Steiner através da Antroposofia, que nos possibilita alcançar uma compreensão cada vez mais aprofundada das leis que regem o desenvolvimento em todos os âmbitos da Vida, a partir da qual podemos também contribuir para o desenvolvimento social saudável.
Como pessoas inspiradas pela Antroposofia, atuantes em todo o mundo, certamente podemos fazer uma diferença, como fermento na massa, contribuindo para que a Antroposofia se torne um real fator cultural em nossa sociedade, para que essa possa alcançar “tal relação com o espírito de forma a possibilitar ao espírito governar o material na vida real” . Vendo quão longe estamos disto, quão distantes estamos até mesmo das intensas discussões que se travam em nossa época sobre todos estes temas, tenho me perguntado em que medida estamos conscientes desta responsabilidade e buscando contribuir, a partir da Antroposofia, para as exigências colocadas para o desenvolvimento da sociedade como um todo em nossa época? A Associação de Pedagogia Social se propõe a contribuir para a reflexão sobre este tema, por meio deste Boletim e dos Cadernos de Pedagogia Social que serão lançados este ano e também por meio dos Seminários de Pedagogia Social. Neste sentido, em continuidade aos Seminários que abordam o Desenvolvimento Social do Indivíduo (SPS-I), do Grupo (SPS-II) e da Instituição (SPS-III), será lançado o SPS-IV cujo enfoque será o Desenvolvimento da Sociedade.
Jos Schoenmaker, é psicólogo social, membro fundador da Associação de Pedagogia Social e consultor do Núcleo Maturi – Ecologia Social (artigo baseado na contribuição do autor para a Conferência da Association for Social Development- Cidade do Cabo- África do Sul- junho 2001)