As forças germinadoras da trimembração social e o seu cultivo
Christof Lindenau
Original: “Die Keimkräfte ser sozialen Dreigliederung und ihre Pflege”
Tradução: Christian Julius Folz (a partir da 4ª edição de 1991, autorizada pelo autor e pela editora Verein für ein Erweitertes Heilwesen – Bad Liebenzell – Alemanha)
Conteúdo
Os cavalos de Mineápolis
A questão social formulada de outra forma
A essência da divisão do trabalho
Higiene Social
Orientação para o ser humano
Socialidade passiva
Maximização do lucro, exercício de poder e determinação externa
No caminho para uma socialidade ativa
Fraternidade, igualdade e liberdade
O caráter de lei da trimembração social
O desemprego, a título de exemplo
Lucro e Prejuízo
Alternativa para o Contrato Coletivo de Trabalho
Para que ainda trabalhar?
Reconhecer e agir
Vida espiritual, jurídica e econômica
A trimembração social como campo de exercício e de prática
A questão social como pergunta higiênica
Bibliografia
Os cavalos de Mineápolis
Todos gritavam emocionados: “Seu filho está andando sem as muletas!”. “Um milagre!”. “Suas preces foram ouvidas”. A mãe da criança era a única que permanecia calma. “Não é milagre”, dizia ela, “é o resultado de um trabalho árduo”.
O que aconteceu? O médico, Dr. Earl R. Carlson, conta sobre sua infância em Mineápolis:
“Naquela época, eu mal era capaz de andar com auxílio das muletas que meu pai me fez, e sem elas, eu ficava completamente desamparado”.
Impressionado pela figura cômica que ele transmitia quando se locomovia com as muletas, um menino vizinho propôs brincar de cavalo, já que as quatro “patas” estavam presentes. Isto parecia coerente, e ele deixou-se conduzir com arreios por certo tempo. Até que o “cocheiro” foi chamado para casa pela mãe e teve a ótima ideia de impedir a fuga do seu “cavalo” retirando-lhe as muletas.
Desamparado e encostado na parede de sua casa, de repente Carlson escuta o apito do almoço da cervejaria que ficava do outro lado da rua. O som estridente sempre assustava os cavalos da fábrica, mas, nesse dia, alguns cavalos saíram descontrolados em disparada.
“Eu estava tão excitado que também saí correndo” – e atrás do galope dos cavalos – “corri um quarteirão inteiro sem as muletas até me dar conta do que estava fazendo. Conseguia andar! Eu, mais do que correndo, entrei em casa para dar a grande notícia a minha mãe”.
Mas isto realmente foi o resultado de um árduo trabalho como afirmara a mãe? O próprio Carlson, que durante parte de sua vida foi um paralítico espástico, diz a esse respeito:
“Minha mãe se enganara, todos os ensinamentos que ela dera foram um auxílio, mas foi o total desvio da atenção para os cavalos fujões e o enorme desejo em segui-los que tornou o impossível, possível; e me fez correr sem ajuda.”
Como tal experiência pode se tornar útil para a vida de todas as pessoas?
Carlson também conta sobre experiências opostas em sua biografia, e essas, com certeza, eram maioria. Elas mostram como a fixação das atenções na pessoa com paralisia espástica levava a um efeito contrário (mesmo que fosse, por exemplo, somente pelo olhar de um estranho durante uma refeição), mantendo o comportamento de Carlson na direção da descoordenação e descontrole dos movimentos do corpo, i.e., se entregando à sua tendência doentia.
Isto levou Earl R. Carlson a estudar medicina posteriormente e, como médico e terapeuta, colocar à disposição sua experiência com a paralisia espástica em crianças.[1]
O que significa, no entanto, essa vivência para o nosso tema? É possível utilizar essa experiência limitada a um campo (a de uma doença específica) para a prática da convivência social?
A questão social formulada de outra forma
Nas últimas décadas desse século (XX), cresce, e com razão, a consciência de que a civilização atual, marcada pela tecnologia, não oferece somente novas alternativas de vida e de convivência. Mais e mais, percebemos que ela tolhe o desenvolvimento do próprio ser. Ela não age somente no sentido de estimular a vida humana, mas também age de forma prejudicial e doentia. Ela não atua só para servir, mas também para dominar.
Isso não é válido somente para a nossa civilização moderna, mas também para a nossa organização social moderna. Da tecnologia, também se deve afirmar que, não só impulsiona o ser humano, abrindo novas possibilidades, servindo a ele, mas também o domina e impede seu desenvolvimento, torna-o doente. Através do que? Através da tendência identificada em todas as formas sociais de organizarem-se a partir do interesse próprio das pessoas. Ou, o que em última análise resulta no mesmo, através da organização da sociedade a partir do interesse de grupos aos quais as respectivas pessoas estão vinculadas por suas necessidades, sua posição social, sua carreira profissional e similares. Esses grupos são: organizações patronais (frente a sindicatos), sindicatos de empregados (frente a organizações patronais), partidos políticos (frente a outros partidos), empresários (frente à concorrência e clientes), organizações de proteção aos consumidores (frente às empresas), estados (frente a outros estados), países de capital privado (frente aos países de economia estatal), países comunistas (frente aos não comunistas), nações industrializadas (frente aos países fornecedores de matérias primas) e assim por diante.
Essa forma de interesse fixa nossa atenção unicamente ao nosso próprio progresso, ao nosso próprio negócio, à nossa própria carreira. Ela limita nosso comportamento social aos limites de nossa própria pessoa, ou do grupo ao qual pertencemos. Em vez de nos ajudar a superar essas barreiras em favor do nosso próximo, o interesse próprio nos aprisiona na unilateralidade a ele associada. Nem conseguimos perceber que a obrigação de pensarmos primeiro em nós próprios, em todos os campos da vida, atua de maneira paralisante sobre nós e sobre o nosso desenvolvimento. Para nós, fica normalmente oculto o que Carlson (com sua paralisia espástica e os movimentos descoordenados) percebia diretamente de forma dolorosa: exatamente a nossa própria impotência em interagir de forma realmente não preconceituosa com cada situação social. Sim, até preferimos negar a possibilidade de tal interação não preconceituosa a admitirmos nossa impotência para tal. Além do mais, não nos damos conta de algo que é decisivo.
A essência da divisão do trabalho
Não nos damos conta de que nossa sociedade atual está alicerçada na divisão do trabalho, o que não se adequa ao objetivo de cada um cuidar de si próprio. Divisão de trabalho implica, justamente, em que todo valor produzido por alguém é passado para frente. Também, quando são gerados produtos prontos, atinge-se tal volume que ultrapassa, em muito, as necessidades dos indivíduos envolvidos em sua produção. Essas quantidades só fazem sentido se for para abastecer outras pessoas, ou outros grupos de pessoas, isto é, elas somente têm sentido para abastecimento alheio. Em nossa sociedade, que atua com base em grau avançado de divisão do trabalho, não é assim que cada um cuida de si próprio; de fato, cuidamos continuamente uns dos outros. Mas, geralmente nós nos furtamos a pensar essa verdade como realidade. Em nosso pensar, e naquilo que resulta socialmente desta forma de pensar, somos ainda uma sociedade em que todos cuidam de si próprios. No que a isto se refere, nosso pensar parou no tempo dos nossos antepassados, quando eles asseguravam seu próprio sustento como lavradores, caçadores e pescadores. Em nosso pensar ainda precisamos dar o passo para uma sociedade fundamentada na divisão de trabalho.
O que hoje vivenciamos ao nosso redor como circunstâncias, inconveniências e emergências sociais, não é por acaso. Assim, por exemplo, o crescente desemprego nada mais é que a conseqüência de uma forma de pensar, que impotente se arrasta atrás da realidade do nosso desenvolvimento social. Como não ficar na mera crítica social e identificar alternativas para essa situação?
Podemos desenvolver o pensamento da divisão do trabalho, e do fato dela decorrente, de cuidarmos uns dos outros por meio da própria divisão de trabalho. Esta implica em que cada um destine o resultado de seu trabalho a outras pessoas o mais possível, e que, por sua vez, suas necessidades sejam satisfeitas através do resultado do trabalho dos outros.
Trata-se agora, de estender as conseqüências da divisão de trabalho até as relações financeiras. Esse passo já foi dado por Rudolf Steiner, o fundador da trimembração social, em 1906, pela formulação da Lei Social Principal, da seguinte maneira: “O bem-estar de um grupo de pessoas que trabalham em conjunto é tanto maior quanto menos cada indivíduo reivindicar para si o resultado de seu trabalho, isto é, quanto mais ele ceder deste resultado a seus colaboradores, e quanto mais o atendimento de suas necessidades se der não pelo seu próprio trabalho, mas pelo trabalho de outros”.[2]
Naturalmente, é altamente incomum para nós sequer chegar a pensar em não reivindicar o resultado financeiro do nosso trabalho, nossa justa remuneração, para nós mesmos. Mesmo assim, se tivermos a coragem de fazê-lo, para nossa surpresa, perceberemos que todos os fenômenos sociais relacionados confirmam, sem mais, o enunciado da lei social principal. É preciso ficar claro que não se fala, aqui, do bem-estar de apenas determinada parte de um grupo de pessoas que trabalham em conjunto, mas do bem-estar de todos os envolvidos. Também deve ficar claro para nós que o “tanto maior” do enunciado se transforma em “tanto menor” quando fazemos o oposto do que está descrito nele. Em verdade, essa lei não diz só que o bem-estar de todos cresce na medida em que cada indivíduo, cada vez mais, cuida dos outros, inclusive no aspecto financeiro; mas também, que o bem-estar comum decresce quanto mais o cuidado de cada indivíduo se volta, cada vez mais, para si mesmo; novamente, inclusive no aspecto financeiro. Justamente, hoje em dia torna-se visível em todo lugar que o bem-estar geral decresce na medida em que cada indivíduo quer manter para si os resultados do seu trabalho, preferencialmente sem nenhum desconto, mesmo aqueles em forma de impostos, tributos sociais ou outras contribuições.
Em contrapartida, a condição de abastecimento alheio mútuo, configurada pela Lei Social Principal, só poderá se tornar realidade num processo de cura da nossa vida social contemporânea, quando não partir do interesse próprio, mas sim, do interesse pelo outro, em prol do bem-estar desse outro. Partindo desse último motivo, as enormes tarefas de nossa sociedade contemporânea ganham uma aparência completamente nova. Duas perguntas aparecem em primeiro plano:
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como esse “interesse pelo alheio”, que se volta exclusivamente para o outro, pode penetrar e dar forma à vida social?
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a que formas sociais esse “direcionamento para o outro” conduz, no lugar das formas hoje consideradas naturais, mas que são alicerçadas na busca compulsória do interesse próprio?
Higiene Social
Justamente a obrigatoriedade de continuamente pensar primeiramente em si, ou no grupo ao qual se pertence por necessidade ou profissão, é que gera, ou pelo menos reforça a disposição para muitas doenças atuais de nossa civilização, até no âmbito físico. Essa obrigatoriedade é, além disso, um dos mais importantes obstáculos para vencer, com as próprias forças, os pontos fracos de nossa constituição física, as crises de nossa saúde ou uma doença já existente.
A preocupação com a higiene social, da forma como foi elaborada nos cadernos homônimos editados pela Associação de Medicina Antroposófica, incorpora, por essa razão, a iniciativa de indicar um caminho para a reestruturação da sociedade humana. Um caminho que coloque algo distinto no lugar da obrigatoriedade de pensar primeiramente em si: o interesse de um ser humano pelo outro.
É dessa renovação que trata o impulso da trimembração do organismo social, pelo qual Steiner se empenhou intensivamente, principalmente nos primeiros anos após a primeira guerra mundial (por exemplo, através da publicação da edição completa no. 23, “Die Kernpunkte der Sozialen Frage in den Lebensnotwendigkeiten der Gegenwart und Zukunft” – Os Pontos Cerne da Questão Social). Trata-se agora de desenvolver criativamente esse impulso sob as circunstâncias sociais transformadas da atualidade.
Orientação para o ser humano
Em uma de suas últimas palestras sobre a trimembração social, e em seu livro “Die Kernpunkte der Sozialen Frage” editado três anos antes,Rudolf Steiner expressou o seguinte: “Essa publicação não teve a intenção de apelar ao pensar sobre as mais diversas formas das instituições sociais, mas como um apelo à própria natureza humana”.
No entanto, fica a questão: “Como podemos nos dar conta, em meio à vida social ao nosso redor, da “própria natureza humana”?
Isso se dá de forma mais simples quando nos confrontamos com outro ser humano. Tal encontro acontece de forma distinta nos diferentes setores da vida social. Assim, por exemplo, no campo da satisfação de nossas necessidades materiais e imateriais, nós dependemos uns dos outros. Neste âmbito da vida social as pessoas se encontram como seres necessitados. Aqui lidamos com as mais diversas formas de necessidades, que vão desde alimentação, vestuário e moradia, até a questão da formação e aperfeiçoamento profissional. Para uma das partes trata-se, aqui, da necessidade por uma determinada mercadoria ou prestação de serviço, nem sempre possível de ser trocada por outra mercadoria ou prestação de serviço. Para a outra parte, trata-se da necessidade por dinheiro. Este último remete, neste contexto, sempre a mercadorias ou serviços de terceiros.
Quando pessoas acordam de forma verbal ou escrita, seus respectivos direitos e deveres, então elas se encontram como seres emancipados. Assim ocorre quando uma das partes pede um produto ou serviço para um determinado horário e a outra aceita o pedido. O mesmo se dá quando se firma um contrato de aluguel ou, de maneira mais complexa, quando alguém tira carteira de habilitação como motorista e, com isso, se sujeita às leis de trânsito. Por emancipação, entende-se aqui uma capacidade humana geral e crescente de fazer e manter acordos.
Ela não deve ser confundida com as habilidades e capacidades específicas que pessoas disponibilizam conjuntamente para realizar algo em favor de terceiros. Isso ocorre em toda atividade profissional, a começar pelo simples trabalho de um ajudante até atividades complexas, como as de um empresário, um professor, um médico e outros. Toda mercadoria é produzida e todo serviço é prestado a partir de um trabalho de cooperação com outros, para poder atender às necessidades de terceiros. Neste setor da vida em sociedade que se caracteriza pela cooperação entre pessoas, estas se encontram como seres capacitados. Isto é, para seu encontro num trabalho de cooperação o essencial é o que cada um traz como habilidades e capacidades.
Assim, na interação entre pessoas, podemos distinguir claramente três aspectos da natureza humana. A forma de nós nos apresentarmos ao outro, ou o outro a nós, é distinta se o encontro se dá no campo do trabalho conjunto, no campo dos acordos de direitos e obrigações, ou no campo da satisfação de necessidades. No entanto, e isto é da maior importância, sempre diz respeito a algo que é próprio de todo ser humano (independente de sexo, raça, povo, nacionalidade, posição, profissão, religião e concepção de mundo), é dado que ele sempre é, ou pode se tornar no decorrer da vida: necessitado, emancipado e capacitado. Capturamos através dessa trimembração da natureza humana algo que é genuinamente universal. Independentemente do lugar do globo ao qual viajemos, ou do estrato da vida social no qual nos movemos, sempre iremos perceber que na base dessas múltiplas teias das relações sociais se evidencia a tríplice natureza do ser humano. Assim como falamos de uma biosfera que envolve nosso planeta, podemos falar de uma socioesfera que envolve o globo. Ela deixa-se comparar a um tapete, que em diferentes partes apresenta diferentes padrões, mas sempre é tecido a partir de três fios distintos. No entanto, coloca-se a questão: em cada encontro concreto, nós nos interessamos, de fato, por esta tríplice natureza da outra pessoa?
Socialidade passiva
Que nós nos interessemos primeiramente pelas nossas próprias necessidades, posição social, carreira (ou pelas do grupo ao qual estamos ligados por necessidade, posição, carreira ou similares) é hoje tão óbvio que parece supérfluo mencionar esse fato. Na prática, no entanto, nos damos conta desse fenômeno mais nos outros que em nós mesmos. Por isso, não é, de maneira nenhuma, supérfluo sublinhar que essa postura, via de regra, é recíproca. Assim, se tivermos que colocar gasolina, o faremos no “nosso” posto na esquina ao lado enquanto os preços das empresas distribuidoras estiverem equiparados. Se, no entanto, outro posto nos permite mexer menos em nosso bolso, normalmente mudamos de imediato para essa opção mais vantajosa. Isso significa que, não só as empresas distribuidoras buscam por suas vantagens, mas nós também. Certamente com a diferença de que o poder de barganha dessas empresas é maior que o nosso. De outra forma, não haveria razão para duvidarmos de que, se nós tivéssemos maior poder de barganha, estaríamos usando-o a nosso favor.
Como no exemplo acima, isso se repete em todos os lugares. Cada um procura ativamente por alguma forma de levar vantagem fazendo com que os outros trabalhem mais para ele do que para si. Se, portanto, no exemplo citado, os clientes pagam o preço solicitado, ou se a empresa petrolífera, de boa ou má vontade, se orientar pelo que é exigido por seus clientes, eles estarão fazendo isso um pelo outro. Mas, só fazem isso por se verem forçados a se adequar aos desejos e exigências do outro. Dito de outra maneira, o cliente realmente faz algo pela necessidade de dinheiro da empresa petrolífera e a empresa faz algo pela necessidade de combustível do cliente. No entanto, não se trata de um processo ativo de aproximação espontânea entre as partes, mas passivo, pelo fato de ser imposto a partir de fora. Dessa maneira nós reagimos essencialmente a uma pressão externa. Mesmo assim, devemos constatar que a nossa vida social se fundamenta quase integralmente por esta postura de cuidado passivo dos outros.
Rudolf Steiner utiliza o termo socialidade para tudo que fazemos em prol de terceiros, tudo que fazemos para cuidar de outras pessoas, ou grupos de pessoas, independente disso acontecer de forma ativa ou passiva. Tudo que fazemos para cuidar de nós mesmos ele denomina de antissocialidade. Nesse sentido, como foi ilustrado pelo exemplo mencionado, podemos constatar que a maior parte do comportamento social é forçado a partir de comportamento antissocial. Sendo assim, esta maneira resulta apenas em socialidade passiva.
Maximização do lucro, exercício de poder e determinação externa
Para evitar mal entendidos gostaria de realçar, nesse momento, que o indivíduo certamente deve pensar em si quando se trata de dar forma e desenvolver a própria vida. Ele nunca se tornaria uma individualidade autônoma se não fizesse algo para si e não trabalhasse em si mesmo. Para cada um de nós alcançarmos essa autonomia é necessário ser antissocial, isto é, não nos preocuparmos com os outros, mas conosco mesmos. Quem, por exemplo, quiser elaborar o que aprendeu durante seu aprendizado profissional com outros, ou o que aprendeu durante a sua prática profissional, deve ter a oportunidade de se retrair de vez em quando do convívio social. Mas, não é dessa antissocialidade necessária que falamos, e sim da antissocialidade levada para dentro do convívio humano, e que provoca a socialidade passiva da qual falamos anteriormente.
Quando ocorre da antissocialidade ser carregada para dentro da vida social, nem sempre esse fato se dá da mesma forma, mas observando atentamente, de três maneiras diferentes:
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Por interesse em maximizar o lucro em benefício próprio, por emprego de capital, formação de monopólio ou similares, mas também por meio da redução da disponibilidade habitual da capacidade produtiva, por exemplo, através de greves;
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Por interesse em exercer poder sobre outras pessoas, utilizando-se, para tal, de polícia ou exército, mas também por meio do atual direito de propriedade;
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Pelo empenho em influenciar e determinar, a partir de fora, o comportamento de terceiros, através de comerciais e propaganda, mas também através de sistemas trabalhistas hierárquicos.
Maximização do lucro, exercício de poder e determinação externa do comportamento são três formas de antissocialidade levadas para dentro da sociedade. Pela pressão de adaptação que exercem, geram essa passividade social, sobre a qual a nossa sociedade atual está construída. Por isso, são reconhecidas até hoje como meios completamente legais de estruturação social. Futuramente, no entanto, se evidenciará cada vez mais que são formas que atuam de maneira socialmente destrutiva. Pela simples razão de que haverá cada vez menos pessoas dispostas a se deixar dominar por outras. Por exemplo, criaram-se organizações de trabalhadores para reagir às pressões patronais com contrapressões. Tentativas semelhantes se observam em todos os campos da vida social. Como, no entanto, essas tentativas não eliminam a causa dessa pressão, mas ao contrário a reforçam, esse caminho da estruturação social se evidenciará cada vez mais como um caminho que paulatinamente levará à destruição de toda vida social. A catastrófica dimensão do índice atual de desemprego já aponta nesta direção.
No caminho para uma socialidade ativa
A estruturação social da qual iremos falar aqui, parte não do interesse próprio, mas do interesse no outro, em prol do outro mesmo. Esse interesse voltado para o outro leva a uma socialidade ativa, em contraste à forma passiva de socialidade descrita anteriormente.
Para que possamos realmente nos interessar pelas necessidades e desejos dos outros, precisamos “esquecer” por um tempo (o tempo que dura o encontro com o outro) as nossas próprias necessidades e desejos. Isso, muitas vezes, não é tarefa simples. Certamente a expressão “o interesse pelo outro em prol do outro mesmo” seria mera teoria se não houvesse pessoas que querem torná-la realidade. Atualmente essas pessoas existem de fato, mesmo que, talvez, não consigam articular, para si mesmas, o que realmente querem. Elas percebem: “precisamos nos libertar de nós mesmos, se realmente quisermos desabrochar como seres humanos”. Esse libertar-se de si próprio pode realmente ocorrer com uma criança enquanto brinca, por exemplo, quando sai correndo atrás de cavalos galopando. Para um adulto que se encontra num mundo cujos problemas assumem diariamente novas dimensões, é como se o objetivo, conscientemente perseguido, de uma entrega desprendida dissesse respeito, em primeiro lugar, a outro ser humano.
No entanto, devemos reconhecer que a força de tal socialidade ativa, considerada a partir de parâmetros externos, ainda é bem pouco significativa. A maioria de nós, mesmo sob as circunstâncias mais favoráveis, só raramente consegue desenvolver o interesse requerido para tal. Da mesma forma como, por exemplo, as donas de casa de antigamente não conseguiam visualizar que o mesmo vapor que subia de suas panelas permitiria, um dia, a entrada numa nova era (a da revolução industrial iniciada com a máquina a vapor); tampouco podemos perceber, agora, as forças transformadoras globais presentes como germe nesse interesse pelo outro em prol de sua própria pessoa. Somente através do estímulo ao desenvolvimento desses germes é que iremos conhecê-las realmente.
Fraternidade, igualdade e liberdade
Já falamos que em situações concretas da vida social o encontro entre seres humanos ocorre de três maneiras diferentes, como seres necessitados, emancipados e capacitados. Dependendo do tipo de relação (satisfação de necessidades, estabelecimento de acordos, ou cooperação), o interesse prático no outro se volta para partes distintas de seu ser. Então perceberemos, para nosso espanto, que na concretização prática desse interesse pelo outro, nossa ação também não será única, mas poderá adotar diferentes formas. Quando refletimos sobre o nosso próprio comportamento social, que recebe seus impulsos a partir do mencionado interesse, percebemos quão diferenciado é este comportamento. Mesmo diante de uma mesma pessoa, interiormente temos outra percepção da socialidade ativa que surge, dependendo da forma como a outra pessoa se apresenta a nós: como ser necessitado, emancipado ou capacitado.
O que isso significa? Trata-se do fato de existirem três formas totalmente diferentes de socialidade ativa. Cada uma das três formas se desenvolve com base num aspecto diferente da natureza humana. Esta é uma das mais importantes descobertas que nós podemos fazer neste campo. Ela nos dá a possibilidade de reinterpretar a máxima de três palavras que a Revolução Francesa nos legou. De qualquer forma, faz todo sentido que, diante da dimensão necessitada do outro, se desenvolva uma forma de socialidade ativa que podemos caracterizar como um empenho por fraternidade. Da mesma forma, podemos caracterizar a socialidade ativa diante da dimensão emancipada do outro como um empenho por igualdade, e diante da dimensão capacitada do outro, como empenho por liberdade para este outro. Desta maneira, as muitas vezes mal compreendidas palavras de liberdade, igualdade e fraternidade não permanecem como ideais sem consistência, mas podem se tornam realidade plena na convivência humana concreta. Essa realidade se torna palpável se tentarmos seriamente responder às três perguntas seguintes:
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Quando é maior a chance de satisfazer de forma adequada a necessidade de um ser humano por determinado tipo de produto: quando o vendedor, inicialmente, se der o trabalho de descobrir o que a pessoa realmente está necessitando, ou quando ele tenta empurrar um produto do qual ele quer se livrar?
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Quando na vida cotidiana um acordo tem mais força de se manter: quando um define, à revelia da outra pessoa, os direitos e deveres de um acordo, ou quando ambos, como parceiros, discutem os detalhes em condições de igualdade?
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Quando pessoas que trabalham juntas conseguem, com o tempo, empregar melhor suas forças e habilidades para os outros: quando elas permanecem presas a tarefas e diretrizes de terceiros, ou quando estão em condições de definir por si a maneira de conduzir seus trabalhos?
Nós já indicamos, anteriormente, que Rudolf Steiner não queria ver suas publicações entendidas como “um apelo ao pensar sobre diferentes formas sociais”, mas como um apelo “à própria natureza humana”. Nós caracterizamos necessidade, emancipação e capacidade como sendo partes dessa natureza humana que saltam aos olhos de forma imediata. Mas, justamente quando nós, talvez a título de experimento, nos voltamos de maneira prática para determinada parte desta natureza humana, de imediato desperta-se outra parte em nós, que caracterizamos neste capítulo como um empenho por fraternidade, igualdade e liberdade. A estas, Rudolf Steiner também queria fazer um apelo em suas publicações, mesmo que por enquanto seja algo que brota em nós de forma inconsciente ou semiconsciente, pelo menos podemos, a posteriori, trazê-las plenamente à consciência.
Ao mesmo tempo, por esse caminho podemos ter um primeiro acesso ao que Rudolf Steiner chama em suas publicações de Trimembração Social. A vida social, evidentemente, é uma unidade. Os produtos pelos quais se tem necessidade são produzidos através da cooperação no trabalho. Os acordos sobre mútuos direitos e deveres se referem a pedidos e entregas de matérias primas, produtos semi-acabados ou acabados, e tudo o mais que for necessário para suprir as necessidades.
Ou se referem, ainda, às condições de cooperação no trabalho e ao uso dos meios de produção necessários. Mas, se a vida em sociedade (que é uma unidade) realmente for estruturada com base em socialidade, ou seja, a partir do interesse no próximo, então devemos levar em conta que, nesta vida em sociedade, encontramos a outra pessoa em três situações sociais distintas e que as três diferentes situações requerem, a partir de sua própria natureza, diferentes formas de vida social; e ainda, que o empenho aqui mencionado por fraternidade, igualdade e liberdade pode fazer surgir essas distintas formas.
O caráter de lei da trimembração social
Fraternidade, igualdade e liberdade, ou a busca pela realização de cada uma delas, referem-se, cada uma, a só uma das três partes da natureza humana trimembrada e, em conseqüência, a um dos três campos da vida em sociedade. Isso, no entanto, não pode ser dito de uma forma de atuar voltada para a maximização dos lucros, práticas de poder e determinação externa. Manipulação e influência atingem não apenas o ser humano capaz, através de sua dependência de uma tarefa, mas também o ser humano emancipado, através da propaganda, e o ser humano necessitado, a partir do merchandising. Ou ainda, o exercício de poder tem lugar tanto nos processos de suprir necessidades, quanto da cooperação, bem como, do estabelecimento de acordos. Por isso, sua atuação não resulta em uma forma social diferenciada e pluriforme, mas sim niveladora e centralizada. Isto pode ser confirmado atualmente em todos os campos da vida social. O Estado único, que atualmente domina praticamente toda vida cultural, a vida jurídica e boa parte da econômica é quase um exemplo perfeito dessa tendência.
Dito isso, podemos formular a lei principal da trimembração social: Quanto mais, no contexto de uma sociedade, a satisfação das necessidades se der com base em fraternidade, acordos forem estabelecidos com base em igualdade e o trabalho for realizado em liberdade, tudo isso a partir do interesse ativo pela outra pessoa, tanto mais surge uma estrutura social trimembrada diferenciada. No entanto, quanto mais predominar o interesse próprio na vida social, no sentido da determinação externa, do exercício de poder e de maximização do lucro, tanto mais essa sociedade tenderá para um sistema uniforme, centralizado.
Assim como formulado anteriormente na “lei social principal”, o uso dos termos quanto mais/maior naturalmente compreende a aplicação, também, do quanto menos/menor. Esse caráter de lei não só nos diz algo sobre o surgimento, mas também do desaparecimento da trimembração social e engloba toda forma de transição possível.
Para colaborar na renovação de um todo social na prática e à luz deste princípio há, ainda, algo distinto muito importante de ser considerado. Maximização do lucro, práticas de poder e determinação externa não são atributos perseguidos exclusivamente por indivíduos, mas manejados por sistemas sociais. Exemplos disso são empresas voltadas completamente para o aumento de seu capital, estados totalitários e organizações burocráticas estruturadas rigidamente de forma vertical e hierárquica.
Se quisermos realmente superar os problemas contemporâneos, então devemos encontrar formas sociais adequadas à busca da fraternidade, igualdade e liberdade. Em outras palavras, devemos tornar-nos socialmente inventivos. Rudolf Steiner propõe e denomina as formas sociais para a busca da fraternidade de associações, as formas sociais para a busca da igualdade de estados ou democracias, e aquelas nas quais se busca a liberdade de corporações.[3] Voltaremos a isso mais adiante. Elas estão para o genuíno interesse pela outra pessoa, assim como uma planta adulta está para as forças germinadoras da semente da qual ela surgiu.
Por isso, faz sentido não parar no enunciado anterior da lei principal da trimembração social, mas precisá-lo da seguinte maneira: Quanto mais, no contexto de uma sociedade, as pessoas, individualmente e em grupos, almejarem estruturar a satisfação de necessidades de forma associativa, o estabelecimento de acordos de forma democrática, e o trabalho de forma corporativa, tanto mais intensivamente se desenvolve neste contexto uma estrutura trimembrada, diferenciada. Por outro lado, quanto mais as pessoas, individualmente ou em grupos, tentarem conduzir esses processos sociais com base em determinação externa, exercício de poder e maximização dos lucros, tanto mais forte esta sociedade tenderá a se estreitar num sistema uniforme e centralizado.
Essa lei é válida no campo social com a mesma determinante exclusividade que uma lei das ciências naturais o é no campo das forças da natureza que abrange. Mas, ela também se diferencia de uma lei natural. Se quisermos aplicá-la na prática não podemos simplesmente, como na aplicação técnica das leis naturais, extrair as condições necessárias da natureza. Nós mesmos teremos que criar estas condições, sendo que elas consistem, ao menos quando queremos atuar em direção à trimembração da sociedade como um todo, nas formas de trabalho associativas, democráticas e corporativas.
O desemprego, a título de exemplo
Um problema típico da sociedade fundamentada na divisão do trabalho, enquanto for estruturada com base nas três formas de antissocialidade anteriormente mencionadas e na passividade social por ela gerada, diz respeito ao desemprego crescente, de início de forma lenta, e depois cada vez mais rapidamente. Este problema se mostra cada vez mais insolúvel para as formas sociais de nosso tempo. Justamente por isso, cabe mostrar a fecundidade da contribuição de uma proposta trimembrada.
O primeiro obstáculo para a compreensão mais aprofundada desse problema vem de um lado inesperado: do lado da linguagem, ou melhor, do lado da sugestão que parte do uso da linguagem atual. Pois, este problema consiste, não simplesmente na falta de postos de trabalho, mas, com base em uma observação mais acurada, se compõe de três elementos. O primeiro é a falta de remuneração. O que, por exemplo, as agências de emprego medem não é quantos lugares há para se trabalhar, mas quantos lugares há para se conseguir uma remuneração. Trabalho existe hoje aos montes. O que está cada vez mais difícil de conseguir é um trabalho ao qual está vinculada uma remuneração satisfatória. Isso ocorre, como ainda veremos, porque na forma atual de pensar, o trabalho não pode ser visto separadamente do rendimento. Na verdade, trata-se de dois elementos completamente diferentes. Juntá-los é apenas um dogma. Naturalmente que não é possível distribuir mais rendimentos do que o total do produto interno bruto (PIB). Mas, como isso será distribuído entre os indivíduos, só aparentemente tem uma relação com a produtividade dos mesmos, mesmo na atual conjuntura. Por isso é que temos diante de nós, não um, mas pelo menos, dois problemas. Um, o desemprego, resolve-se de maneira relativamente simples, o outro, a falta de rendimentos, já é de solução bem mais difícil.
O terceiro problema, relacionado aos dois problemas mencionados acima, se refere à ausência de um acordo trabalhista. Fato é que os dois primeiros problemas começam somente com a rescisão de um contrato de trabalho, o que pode ter várias causas. Tanto um lado, como o outro, pode ter rescindido o acordo trabalhista. Cada um dos lados pode tê-lo feito por razões as mais distintas. O trabalhador, porque o trabalho não lhe agrada mais, ou porque julga que o salário não é mais compatível. Ambas as razões facilmente são confundidas atualmente com aversão ao trabalho; porque esta, facilmente pode ser ocultada por aquelas razões. O empregador, por sua vez, também pode ter diferentes razões. Por exemplo, devido a dificuldades na colocação do produto, em conseqüência das quais deve reduzir a produção, reduzindo, com isso, a quantidade de mão de obra empregada. Ou porque, por exemplo, em função da automatização de sua produção decidiu destinar futuramente o dinheiro, até então utilizado para salários, para outras finalidades.
Para a nossa exposição, isto significa que, onde hoje se fala do desemprego, na verdade há uma composição de três problemas diferentes: a ausência de um acordo de trabalho, a falta de rendimento, e a falta de trabalho. O primeiro diz respeito ao ser humano como pessoa emancipada e deve ser resolvido no campo dos acordos, no sentido de um desenvolvimento democrático da igualdade. O segundo, diz respeito ao ser humano necessitado, e uma solução no campo da satisfação das necessidades deve ser procurada no sentido de um desenvolvimento associativo da fraternidade. O último, diz respeito ao ser humano capacitado e é, por isso, uma questão de organização do trabalho, está no campo do trabalho em cooperação, no sentido de um desenvolvimento corporativo da liberdade. A ideia da trimembração responde, portanto, com uma contribuição tríplice a esse problema, normalmente experimentado como algo unitário.
Lucro e Prejuízo
Ao lado de muitas experiências dolorosas, o desemprego atual propiciou, também, algumas experiências que poderão nos ajudar diretamente na reestruturação da sociedade humana. Por exemplo, a experiência de que o lucro poderia consistir da possibilidade de uma empresa estar em condições de, por mais um ano, continuar produzindo e assim manter os postos de trabalho e respectivamente os postos de remuneração. Mesmo quando no final do ano, por assim dizer, não sobre “nada” e o resultado seja igual a zero. É importante não deixar essas experiências passarem despercebidas. Pois, se dentro de uma comunidade deve surgir um lucro real para todas as pessoas ou grupos de pessoas participantes, este lucro só pode consistir na continuidade da própria vida e não no aumento do capital envolvido.
Ou, expresso de maneira diferente: lucro no sentido de aumento do capital, acima do que é necessário para a manutenção da vida, só pode acontecer quando, para outro, houver redução de capital, portanto prejuízo. Aumento de capital, no sentido indicado, para todas as pessoas e grupos de pessoas de uma determinada sociedade, ao mesmo tempo, é impossível. Onde tal aumento de capital aparentemente ocorre, há um erro de observação ou julgamento, no qual, uma parte da sociedade é confundida com a sociedade como um todo. Todos sabemos o quanto estamos inclinados a fazer rapidamente essa confusão.
Para uma forma associativa de sociedade, resultante de uma fraternidade mais desenvolvida, fazer lucro não significa mais do que a criação de meios financeiros suficientes para a satisfação das necessidades daquele momento no que diz respeito ao sustento. Não o tipo de lucro que, no decorrer do tempo, possa conduzir à fome e à pobreza em algum lugar do mundo. Esse tipo de “lucro associativo” poderia ser perseguido de duas formas: de um lado, chegando dentro de determinada empresa no final de cada ano ao empate e, de outro (e isto ocorrerá mais genericamente), através da compensação contínua dos excedentes e perdas entre os diferentes empreendimentos. Certamente que esse procedimento parece-nos, inicialmente, pouco realista. Mas, ele já é amplamente adotado em diferentes setores. Por exemplo, entre empresas do setor industrial e instituições de ensino (profissionalizante). O irrealista, atualmente, nisso tudo é somente que a compensação se dá por meio de um caminho de custos crescentes, que são os impostos. Devido à complexidade de seu acompanhamento e de sua não transparência este caminho é ainda mais irracional do que seria o estranho processo de taxar primeiramente com um imposto os departamentos de uma empresa multi-departamental e, com isso, compensar eventuais déficits que um departamento possa apresentar. Ainda assim: o que legitima socialmente essa proposta é a compensação financeira entre empreendimentos com excedentes “crônicos” e outros com perdas “crônicas”. Busca-se lidar e desenvolver esse aspecto legítimo no contexto da estrutura social associativa, enquanto se almeja melhorar o aspecto não legítimo na direção em que atualmente, sem a intervenção do imposto, se dá a compensação entre os diversos departamentos de uma mesma empresa. Portanto, o nosso sistema atual de impostos e tributos precisa urgentemente de melhorias como essas que resultem em redução de custos.
As empresas de diversos setores, interligadas através de um sistema de compensação como esse, formam uma associação no sentido da trimembração social. No momento em que esta associação se junta a outras associações, surge, pelo compartilhamento de experiências muito variadas, uma consciência cada vez maior sobre o que as pessoas que vivem dentro e em torno de cada empresa necessitam realmente para suprir suas necessidades. Em especial, surge uma consciência cada vez mais acurada sobre a questão de quanto pode custar cada produto que o consumidor realmente necessita. Assim, possibilitar, de um lado, uma alimentação boa e variada para todos e, por outro lado, frear o consumo de produtos industrializados descartáveis que é prejudicial para o nosso meio ambiente. Pois, a formação do preço também é uma questão de fraternidade. Não é o preço individual que, em última análise, determina a capacidade de compra de certa quantia em dinheiro que o consumidor tem na mão, mas o conjunto de todos os preços é certamente determinante para tal.
Uma distribuição de rendimentos arbitrada a partir desse conjunto de preços vai permitir uma participação nos lucros gerados da maneira anteriormente mencionada, de forma tanto mais adequada, quanto mais se conseguir que tal distribuição se oriente pelas necessidades dos colaboradores de uma empresa e de seus dependentes. E ainda, na medida em que se consegue destinar os resultados que restarem após a satisfação das necessidades dos próprios colaboradores, não a uma retenção dentro da própria empresa como fator de poder, mas colocando-os à disposição da satisfação de necessidades de colaboradores de empresas associadas.
Alternativa para o Contrato Coletivo de Trabalho
Se observarmos os dados puramente estatísticos perceberemos que, na Alemanha, num grupo de 100 pessoas, incluindo donas de casa, crianças e jovens, doentes, desempregados e idosos, mais de 60 recebem rendimentos não diretamente ligados ao próprio trabalho. Isto significa que de 100 pessoas, menos de 40 se enquadram na tal ficção de que o rendimento necessariamente está relacionado com o trabalhar para terceiros. Também para esse último grupo a realidade social é diferente do que prega o dogma da necessária relação entre rendimento e trabalho. Pois, esse rendimento, se analisado minuciosamente, não vem de um trabalho realizado, mas do poder exercido por este grupo de pessoas frente a outros, por exemplo, por meio de sua vinculação com sindicatos, que negociam anualmente um novo Contrato Coletivo de Trabalho. Mas, dentro da sociedade como um todo, a prática do poder de uns significa a fraqueza e impotência de outros. A aspiração por uma estrutura social democrática, como consequência da busca pela igualdade entre todas as pessoas, não pode ter por objetivo legalizar o poder dos “blocos de poder” contra outras pessoas. Se esta busca quiser contar com credibilidade, então se trata, justamente, de tornar esse poder supérfluo. Só então é possível uma igualdade verdadeira.
Assim, no lugar de um Contrato Coletivo de Trabalho entre as organizações que representam os empregadores e os empregados, vem ao caso, por exemplo, que toda pessoa que venha a participar de um processo de trabalho, venha a firmar dois contratos: um de trabalho e outro de rendimento. No primeiro, as próprias atividades são regulamentadas, as circunstâncias sob as quais tem lugar e seu tempo de duração. O segundo, regula o valor e forma de pagamento dos rendimentos, que é independente do trabalho prestado, pois diz respeito apenas às necessidades daquele que trabalha. O desacoplamento desses dois elementos, trabalho e rendimento, hoje interligados nos Contratos Coletivos de Trabalho, poderia ter, como conseqüência, que a necessária suspensão do contrato de trabalho, em função de redução nas vendas e conseqüente redução na produção, não afete automaticamente também o contrato de rendimentos. Dessa forma, o desemprego não se transformaria automaticamente numa perda de rendimento. Essa regulamentação entraria no lugar do seguro desemprego atual e trabalharia de forma mais econômica por racionalizar o imenso aparato burocrático. O empreendimento que continuaria pagando os rendimentos, mas não se tornaria inadimplente e, portanto, não comprometeria os rendimentos dos colaboradores remanescentes, pois ele seria carregado por uma rede de relações associativas, que conjuntamente é solidária.
Essa regulamentação teria também a vantagem do colaborador despedido não ficar “na rua” após a rescisão do contrato de trabalho. Ele se manteria vinculado ao meio do qual ele, até então, fazia parte. Com o apoio das relações associativas concernentes a isto e com a colaboração das relações corporativas a serem ainda descritas; esse meio deve estar, de maneira geral, em melhores condições do que uma agência anônima de empregos de, por exemplo, ajuda-lo a encontrar um novo local de trabalho e um novo rendimento. Além disso, e isso é extremamente necessário, o antigo empregador se confrontará concretamente, e não apenas estatisticamente, com as conseqüências sociais que sua rescisão proporcionou. Ou com as conseqüências da leviana construção de uma sobre capacidade, que agora não faz mais sentido, e que levou à demissão. Somente quando um novo local de trabalho for encontrado e assegurado contratualmente, é que o contrato de rendimento antigo pode ser desfeito e passar para um contrato de rendimento com um novo círculo de trabalho.
Em determinadas circunstâncias, por exemplo, para colaboradores mais antigos que buscam por novas tarefas sociais que tem mais a ver com o relacionamento direto de pessoa para pessoa, poderiam ser encontrados todo tipo de soluções intermediárias.
Para que ainda trabalhar?
Quem não conhece, ou reprimiu o amargo sentimento de ser desnecessário, vai externar, se não o fez até agora, a conhecida e bem difundida opinião de que a caça ao dinheiro, também em forma de salário ou remuneração é, de fato, o único elemento impulsionador que mantém funcionando a máquina produtiva da atual sociedade. Caso esse papel do dinheiro viesse a se extinguir, provavelmente ninguém iria mais trabalhar. Para que ainda trabalhar se, sem isso, também já se cuida de todos? Se fosse o caso de uma resposta exclusivamente intelectual, então esta seria: por que neste caso o dinheiro pago de acordo com as necessidades não valeria mais nada, pois restaria pouco demais para se comprar.
No entanto, não se trata aqui de trazer tal esclarecimento autoevidente, mas da questão da motivação para o trabalho em geral. Imaginar a existência de outras razões para o trabalho, além de ganhar dinheiro, é sem dúvida nenhuma difícil para pessoas que desde a sua juventude foram condicionadas a um sistema de remuneração de acordo com o trabalho realizado. Em todo caso, é difícil para eles imaginar que não sejam apenas “loucos” os que trabalham por alguma outra razão. Mas, essa dificuldade na verdade diz pouco sobre o ser humano que trabalha como tal, mas muito mais sobre o quanto a atual ordem social conseguiu manipular e até mesmo estragar o ser humano que trabalha.
Em que sentido? Quem só trabalha para ser remunerado pelos seus serviços, após relativamente curto tempo, independentemente de precisar ou não de mais dinheiro, vai querer trabalhar apenas o suficiente que ele julga adequado frente ao salário que recebe. Basta observar a pré-disposição em fazer greves para confirmar isso, e mais: qual pessoa, cuja melhor ou pior situação econômica depende exclusivamente da remuneração de seu próprio trabalho, irá escolher, quando se apresentar a oportunidade para tal, uma atividade profissional a partir do que realmente quer e tem capacidade em contribuir, ao invés da perspectiva sobre o retorno financeiro? A sociedade não se beneficia com as conseqüências de ambas. Ninguém vai querer deixar consertar seu carro por alguém que está unicamente interessado em sua remuneração e não na total segurança do veículo consertado no trânsito. Ninguém vai deixar-se tratar por um médico que escolheu e exerce sua profissão unicamente por lhe possibilitar altos rendimentos. Mas, isso vai acontecer de maneira crescente, até em lugares onde isso ainda não ocorre, se não aliviarmos aqueles que trabalham pela preocupação com seus próprios ganhos. Somente alguém que não precisa se preocupar constantemente consigo mesmo e com suas próprias possibilidades de sobrevivência pode pensar, realmente, nas outras pessoas e trabalhar para elas.
Quanto mais ele conseguir trabalhar para outros a partir da livre vontade própria e com base no próprio entendimento, mais ele estará disposto a assumir responsabilidade própria pelo resultado final. Mas, isso significa, também, não estar amarrado a procedimentos e diretrizes de cuja elaboração ele não participou.
Aqui aparece um terceiro componente, além da estruturação associativa no campo da satisfação das necessidades e de uma estruturação democrática no campo dos acordos. Ela se refere, não à relação entre empresas de diferentes ramos, mas justamente à relação entre empresas do mesmo segmento. Devido à preocupação com uma formação de preço a mais favorável possível, ou que pelo menos assegure a continuidade da empresa, estas empresas se encontram constantemente numa relação de concorrência, ainda fortalecida pela legislação contra a formação de cartéis. A luta por maior participação no mercado leva facilmente, junto a quem ganha, a um excesso de ampliação da capacidade produtiva e, junto a quem perde, à dispensa de colaboradores; e, por fim, à falência com todas as conseqüências em termos de desemprego que se manifestam hoje em dia tão abundantemente. Se, por outro lado, a questão da pesquisa de necessidades e de formação de preço, no sentido anteriormente indicado, puder ser assumida pelas associações, as empresas de um mesmo segmento estarão livres para se concentrar conjuntamente nas bases espirituais e morais de seu trabalho. Por exemplo, elas acharão juntas soluções inovadoras para o problema da capacitação e aperfeiçoamento profissional em grande escala. Também irão trilhar caminhos totalmente novos no que diz respeito à questão global da proteção da natureza e do meio ambiente, pelo simples fato de considerarem isso, em primeira instância, uma responsabilidade das próprias empresas e, só em segunda instância, uma responsabilidade do Estado. Quando, desta maneira, empresas de um mesmo segmento se juntam, podemos denominar isso, no espírito da trimembração social, de uma estrutura social corporativa, que surge em continuidade à busca da liberdade. Esta diz respeito sempre à forma de cooperação entre aquelas pessoas que, pela articulação de suas habilidades, prestam um serviço conjunto a favor de terceiros.
Reconhecer e agir
Com isso, encerramos por agora nossa exposição que, a partir de um dos mais incisivos problemas da sociedade atual (que indicamos corriqueiramente com a palavra “desemprego”), quis trazer uma primeira visão global da atuação da trimembração social. Aproximando-nos de três lados diferentes do problema, conscientizamo-nos que, numa análise mais acurada, são três problemas. No sentido da socialidade ativa, já descrita, ele nos coloca três tarefas que requerem cada qual, uma resposta. Mas, isso é válido para todos os grandes problemas sociais de nossa época pela simples razão dos três aspectos (da satisfação das necessidades, do estabelecimento de acordos e do trabalho em conjunto) estarem tão mesclados no contexto da atual estrutura uniforme e centralizadora, que conflitos sobre um aspecto se refletem diretamente nos outros dois. Conflitos de natureza distinta se tornam ainda maiores em função da interdependência ou se tornam mutuamente insolúveis.
Hoje precisamos de uma ciência social que desate essa trama nefasta e evidencie cada um dos problemas sociais de maneira a desenvolver soluções realistas. Esta última não é só uma questão das ciências sociais, mas ao mesmo tempo, uma questão de arte social. Uma solução será tanto mais satisfatória, quanto mais todos os envolvidos conseguirem lidar ativamente com os problemas no sentido da socialidade trimembrada, da qual falamos anteriormente. Mesmo assim, não devemos esquecer de que se trata, ao mesmo tempo, de uma arte de atuar em cada situação, a partir das possibilidades do momento. Não se trata de achar “a solução ideal” (por melhor pensada que seja), mas muito mais da possibilidade de que a solução encontrada em determinada situação permaneça passível de transformação e evolução. Em seu prefácio à segunda edição de seu livro “Os pontos cernes da questão social” Rudolf Steiner apontou expressamente pra essa mobilidade:
“Assim como um organismo volta a ter fome algum tempo após estar saciado, também o organismo social passa de um sistema ordenado de relações para uma situação de desordem novamente. Não há um alimento que sacia para sempre, como tampouco existe um remédio universal para ordenar as relações sociais”.
Vida espiritual, jurídica e econômica
Após as considerações anteriores, devemos ainda salientar que Rudolf Steiner denominou, de maneira diferente da que nós o fizemos aqui, as três áreas da vida social que deveriam ter cada qual sua própria forma de auto-gestão. Assim, ele raramente fala de satisfação das necessidades, mas de “vida econômica”, tampouco fala de acordos, mas de “vida jurídica” e em lugar de cooperação ele fala de “vida espiritual”. Mas, a descrição dele é a mesma. Mesmo assim, não foram usadas no texto essas três denominações por duas razões, ambas relacionadas à força sugestiva do vocabulário em uso. Por um lado, atualmente entende-se por vida econômica somente a dimensão material, e por vida espiritual somente a cultural. Isto é bem diferente na interpretação de Rudolf Steiner. Aquilo que um professor realiza com seus alunos, ele considera economicamente como mercadoria da mesma maneira que, por exemplo, um par de sapatos colocados à venda numa loja. Ele considera como vida espiritual não somente a expressão de habilidades no campo cultural, mas expressamente o uso de todas habilidades do ser humano que de alguma forma beneficiam a sociedade (vide 2º e 3º capítulo do livro “Os pontos cerne da questão social”).
A outra razão para não utilizar nos capítulos anteriores as palavras vida espiritual, jurídica e econômica está no fato de sugerirem uma divisão das pessoas, com alguma relação com a divisão feita na idade média em três categorias: nobreza, eclesiástica e camponesa, mas sem relação nenhuma com a trimembração social. Dessa forma, é absurda a ideia de querer separar as pessoas em categorias da vida econômica (empregados da construção civil, ferramenteiros, eletricistas, etc), da vida jurídica (por exemplo: juristas, advogados, policiais) e da vida espiritual (como professores, artistas, pastores de igreja). Com a Trimembração Social não se indica em absoluto uma divisão de pessoas. Pelo contrário. Como vimos, toda pessoa que trabalha para outras, profissionalmente ou não, é integrante dos três âmbitos da vida social. Ela precisara interagir com outras pessoas para ter suas necessidades satisfeitas, para acordar direitos e deveres e para a cooperação no trabalho. Se, no entanto, estes pontos de vista forem levados em conta não há nada a opor ao uso dos termos vida econômica, vida jurídica e vida espiritual. O operário que produz bens materiais está com a sua atividade na vida espiritual da mesma forma que o professor: ambos empregam suas habilidades específicas em cooperação com outros. Somente a partir do momento que esses bens materiais se destinarem a satisfazer necessidades de outros, passam a desempenhar um papel na vida econômica, no sentido da trimembração social. Assim, aqui também depende de se libertar da conotação usual das palavras, para assim poder perceber, de forma despreconcebida, os fatos relevantes da vida social.
Em conexão com isso, podemos dizer que na trimembração social se trata de uma forma associativa da vida econômica, uma forma democrática da vida jurídica e uma forma corporativa da vida espiritual, se estes termos forem entendidos no sentido anteriormente exposto.
Como podem então ser cultivadas e desenvolvidas as forças germinativas que promovem uma renovação radical da vida espiritual, jurídica e econômica? Algumas indicações para tal serão dadas no próximo capítulo.
A trimembração social como campo de exercício e de prática
A primeira forma de exercício a ser considerada diz respeito à autoeducação para o desenvolvimento de um pensar totalmente claro. Entre outros, adequam-se para tal, aqueles pensamentos contidos na lei social principal e na lei principal da trimembração social. Isso também é válido para o conteúdo das três “leis secundárias” à lei principal da trimembração social, cada uma das quais se aplica a um dos âmbitos da vida humana na sociedade e cujo enunciado é:
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a vida espiritual de um todo social se desenvolve mais frutiferamente quanto mais ela for originada a partir do comprometimento com a liberdade de todos os que colaboram, e esse comprometimento se desenvolver na direção de uma forma corporativa de trabalho;
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a vida jurídica de um todo social se mostrará mais sustentadora das relações na medida em que se fundamentar na busca da igualdade entre as partes e esta busca se transformar numa forma democrática de trabalho;
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a vida econômica de um todo social se desenvolve tanto mais satisfatoriamente para cada um, quanto mais for exercitada a busca da fraternidade por todas as pessoas participantes e essa busca se ampliar na direção de uma forma associativa de trabalho.
Quem considerar essas leis apenas como “ideais”, que devem ser implementadas contra a triste “realidade”, este pode ser considerado, no melhor sentido, como alguém que atua idealisticamente. Ele só se tornará alguém que atua a partir do entendimento, e é isso que importa no atual momento da vida social, quando ele se der conta de que não se trata de promover seus ideais contra as leis que regem a realidade, mas que estes ideais se encontram profundamente ancorados dentro desta realidade.
Na realidade, essas três leis abrangem todos os processos e fatos da sociedade moderna fundamentada na divisão do trabalho e não somente aquelas dignas de serem almejadas sob a ótica da trimembração social. Assim como ambas as leis principais mencionadas, elas descrevem não só as condições sob as quais a cooperação se torna mais frutífera, os acordos mais sustentáveis e o atendimento de necessidades mais satisfatório, mas também as condições sob as quais as mesmas diminuem. Também estas leis são válidas, necessária e exclusivamente, nos campos mencionados da vida em sociedade como o são as leis naturais para os respectivos campos da natureza. Com a diferença de que o ser humano não pode simplesmente retirar da natureza, as condições necessárias, mas precisa descobri-las a partir de si.
Um segundo exercício consiste em eu buscar me situar nas mais diversas situações, em qual dos três âmbitos da vida social as pessoas em minha volta (e eu com eles) estão juntas, estabelecem relações umas com as outras, se encontram. Nós entramos, por exemplo, numa loja de sapatos. Como outros clientes, nós o fazemos por termos uma necessidade. Essa necessidade, os colaboradores da loja procuram suprir no momento em que nos vendem o produto por nós desejado. Da mesma forma, como nós contribuímos, através do pagamento do valor da mercadoria, para o suprimento das necessidades deles (e as necessidades daqueles que produziram os sapatos, adquiriram componentes, forneceram as matérias primas e assim por diante)? Visto desta perspectiva, as pessoas se encontram na loja de sapatos no âmbito da vida econômica. Isto já muda quando algum de nós entra na loja por trabalhar lá. O que o liga então a outros colaboradores não é a necessidade por um par de sapatos, mas a disposição de empregar suas habilidades, junto com outras pessoas, em prol de terceiros – o cliente. Esse encontro se dá no campo da vida social que denominamos, com Rudolf Steiner, de vida espiritual. Uma terceira dimensão de relacionamento entre as pessoas que lá se encontram, é dada, por exemplo, na definição do acordo em torno do horário de funcionamento. Por um lado, este regulamenta o direito de compra do cliente e o dever de venda do lojista. Por outro lado, este está vinculado aos horários de trabalho que os colaboradores combinaram entre si. Aqui tanto os horários de trabalho e do expediente da loja podem estar regulados por leis que foram acordadas entre todos os cidadãos emancipados do respectivo estado no âmbito de sua legislação. Em ambos os casos trata-se de uma relação entre as pessoas no âmbito da vida jurídica.
Por meio de tais exercícios percebemos com crescente naturalidade nos diversos contextos e situações da vida social, como os três campos mencionados não estão separados uns dos outros, mas estão entrelaçados. Administrar e dar forma a estes três campos não significa querer separá-los. Isto não faria sentido algum. No entanto, faz sentido querer estruturar cada um dos três campos de acordo com as respectivas condições vitais, de tal forma que dessa estruturação resulte a melhor forma de encontro e de cooperação do grupo possível neste âmbito. É isto que almeja o impulso social de Rudolf Steiner, é por esta razão que não se trata aqui de uma tripartição, mas de uma trimembração.
Para exercitar na prática a cooperação entre esses três campos, dever-se-ia, junto ao cultivo das mencionadas forças sociais germinadoras, participar de uma iniciativa social, que busca, mesmo que seja num âmbito muito discreto, contribuir para a renovação da vida social por meio de uma atuação no sentido descrito. A estruturação social da primeira escola Waldorf fundada em 1919, em Stuttgart, sempre foi vista por Rudolf Steiner como uma contribuição para tal renovação. Temos hoje um grande número de iniciativas, nas quais se busca de forma mais ou menos intensa praticar a trimembração como forma de trabalho (vide para isto as indicações bibliográficas).
A cooperação numa iniciativa social promoverá o desenvolvimento das forças germinadoras aqui mencionadas, na medida em que isso levar a um desabrochar ativo da própria socialidade, na direção das três qualidades sociais básicas mencionadas anteriormente como fraternidade, igualdade e liberdade. Esse cultivo, no entanto, não deve ser visto como um exercício temporário, mas como uma questão para todo nosso modo de viver. Assim ela se tornará para nós uma questão que diz respeito ao nosso próprio modo de ser.
A questão social como pergunta higiênica
Heilsam ist nur, wenn
im Spiegel der Menschenseele
sich bildet die ganze Gemeinschaft;
und in der Gemeinschaft
lebet der Einzelseele Kraft.
Salutar só é quando
no espelho da Alma Humana
se forma a comunidade inteira
e na comunidade vive
a força da alma individual.
Rudolf Steiner[4]
O ser humano é simultaneamente um ser social e antissocial. Mas a antissocialidade de nosso Eu em busca de sua autorrealização só atua de forma perturbadora, até destruidora, se ultrapassar o âmbito do pessoal. Enquanto ela tem fora do âmbito pessoal, a característica de destruir parcialmente ou totalmente as estruturas sociais da convivência humana, no âmbito pessoal a antissocialidade atua de forma construtiva. Por seu intermédio se desenvolve a personalidade autônoma colocada sobre os próprios pés. Com isso, o ser humano se realiza a si mesmo, por buscar e encontrar uma maneira de pensar e de viver que, em maior ou menor medida, lhe é própria. No entanto, assim que o ser humano começa a se encontrar, é chegado o momento onde outra coisa ainda precisa ocorrer.
Pode-se facilmente “passar dormindo” esse momento. Em todo caso, é necessário um novo “estar desperto”, se não quisermos colocar em risco, a partir de dentro, o que até agora foi alcançado (por exemplo: que a pessoa se perca em suas próprias unilateralidades, que partes fracas de sua constituição se façam perceptíveis, que restrições na saúde se tornem obstáculos para a continuidade da vida). O ser humano percebe neste momento de sua vida que uma segunda forma de autorrealização o espera. Uma que consiste na busca de uma entrega consciente ao mundo social. Esta será tão mais frutífera para esse mundo, quanto mais consciente, vigoroso e autônomo seu Eu se tornou através da primeira forma de autorrealização. A autorrealização que surge pelo desabrochar da tríplice socialidade ativa quer nascer em cada ser humano.
Com isso, a questão social se coloca perante nós como uma pergunta higiênica, pois cada ser humano encerra em seu próprio ser a disposição a essa segunda autorrealização. Tanto que a primeira autorrealização fica ameaçada se a segunda não se desenvolver. Mas, para a sua concretização, assim como da sua saúde física e equilíbrio espiritual, ele depende de encontrar em sua vida a possibilidade de viver a partir da entrega ativa a outros seres humanos. Não só o organismo social depende de sua colaboração, mas também ele depende desta colaboração no âmbito do organismo social, no que diz respeito ao contínuo buscar e encontrar a saúde corporal e o equilíbrio espiritual. Isto significa, no entanto, que o outro lado da questão social é, de fato, uma questão higiênica, em muitos casos, até mesmo terapêutica.
Neste sentido a convivência humana, e o próprio organismo social com sua vitalidade renovada, devem ser vistos como o remédio mais abrangente que possa ser preparado atualmente. Quanto mais, de um lado, a força de doação dos indivíduos viver na sociedade, que sem ela se endureceria num sistema rígido de meras obrigatoriedades, tanto mais também viverá a plena diversidade da vida humana presente na sociedade em cada pessoa, que sem ela ficaria amarrada a suas próprias unilateralidades e limitações.
Bibliografia
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Rudolf Steiner: “Os pontos cernes da Questão Social”; “Uma Nova Economia”; “Estrutura e Movimento”.
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Walter Kugler e Rudolf Steiner e a Antroposofia. Köln, 1978.
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Stephan Leber: A forma social da Escola Waldorf – uma contribuição para a visão social de Rudolf Steiner. Stuttgart, 1974.
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Bos/Brüll/Henry: Estruturas Sociais em Movimento- a Trimembração Social em Teoria e Prática. Zeist, 1973.
-
Erhard Fucke: Mais chances através de maior qualificação profissional – Reportagens, análises, modelos organizacionais. Stuttgart, 1977.
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Reinhardt Giese (editor): O atuar Social a partir do reconhecimento do todo social: Trimembração Social hoje. Um livro atual e informativo. Rabel, 1980.
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Além desses a publicação mensal “Bankspiegel” da GLS Gemeinschaftsbank e.G., 4630 Bochum, Oskar-Hoffmann-Strasse 25.
Christof Lindenau, 1928, é membro ativo da Sociedade Antroposófica Alemã, centro Nordrhein-Westfaalen. Formou-se em Stuttgart numa escola técnica e posteriormente na Universidade de Freiburg (Breisgau). Um período de vários anos na Finlândia e a participação no conselho do Banco de orientação antroposófica em Bochum possibilitaram impressões fundamentais em vários aspectos das questões sociais. Desde a nova fundação, nos anos 70, trabalha em ciências sociais na Freien Hochschule für Geisteswissenschaft no Goethenaum em Dornach, Suíça.
[1] Earl R. Carlson: “So geboren. Der Lebensbericht eines Arztes und Heilpädagoge”. Stuttgart, 1973.
[2] Veja também “Economia e Sociedade” de Rudolf Steiner, Editora Antroposófica.
[3] Nota do tradutor: Rudolf Steiner dá à palavra “corporação” um significado próprio, distinto do entendimento associado a este termo nos dias atuais.
[4] Essas palavras foram escritas por Rudolf Steiner à sua colaboradora Edith Maryon no livro “In Ausführung der Dreigliederung des sozialen Organismus”, edição geral nº 24, como lema da ética social.